By André Petry revista veja
Rachel Dolezal é uma anônima que ficou famosa como Michael Jackson ao contrário: é branca e virou negra. Ou melhor: fingiu ser negra. Rachel estudou na Universidade Howard, tradicional reduto de universitários negros em Washington DC. Casou-se com um negro, com quem teve um filho, hoje com 13 anos. Tornou-se professora de estudos africanos na Universidade Eastern Washington, no estado de Washington. Desde o ano passado, presidia, na cidade de Spokane, a seção local da NAACP, sigla em inglês para a principal entidade de defesa dos direitos civis dos negros. Sua gestão organizou as finanças, ampliou a militância e trouxe visibilidade à NAACP. Em janeiro passado, Rachel até postou uma foto em sua página no Facebook em que aparecia ao lado de um homem alto, negro, que identificou como seu pai. Com seu cabelo encarapinhado e pele bronzeada, Rachel, 37 anos, era um exemplo de militante negra. Só que era tudo mentira.
Na semana passada, os pais de Rachel, que moram no estado de Montana, deram entrevista a uma emissora de televisão e disseram que a filha é branca, tal como eles próprios: “Ela é obviamente nossa filha e nós somos obviamente caucasianos.” Ruthanne e Lawrence contaram que, quando Rachel era adolescente, adotaram quatro crianças negras. Rachel afeiçoou-se aos irmãos e, mais tarde, imergiu na cultura negra. De uma década para cá, mais ou menos, os pais começaram a receber avisos de amigos informando que a filha andava se apresentando como negra. Como prova do que afirmavam, os pais de Rachel forneceram uma foto de adolescência. Na imagem, Rachel está sorrindo, cabelos loiros e lisos, olhos claros, entre o azul e o verde, e o rosto salpicado de sardas. Segundo os pais, a família tem ascendentes alemães, suíços e checos, com uma pitada de indígena. Em função de um desentendimento familiar, Rachel não fala com os pais há cerca de dois anos.
A falsificação da branca que virou negra conquistou a atenção de Spokane, cidade esmagadoramente branca, e logo ganhou as páginas dos principais jornais americanos e sites americanos e do mundo. Na segunda-feira, Rachel renunciou à presidência da NAACP. No dia seguinte, Rachel deu várias entrevistas, mas não esclareceu os motivos que a levaram a mentir sobre si mesma. Para comandar a NAACP, ser negro não é um requisito. Em outros tempos, nos Estados Unidos, era comum que negros se identificassem como brancos, quando a cor da pele não os contradizia abertamente. No entanto, o inverso sempre foi raro em função da discriminação e do preconceito contra os negros. Hoje em dia, porém, o caso de Rachel parece mostrar que, pelo menos em certas circunstâncias, é melhor parecer negro do que branco.
Involuntariamente, Rachel provocou um debate relevante: afinal de contas, qual o significado do que se convencionou chamar de “identidade racial”? Do ponto de vista científico, não existe “raça branca” ou “raça negra”. Existe “raça humana”, nada além disso. Biologicamente, pertencem à mesma raça os indivíduos que podem cruzar entre si e produzir uma prole fértil. Com o avanço científico, descobriu-se ainda mais: um alemão de Berlim pode ser geneticamente mais parecido com um negro de Luanda do que com outro alemão de Berlim.
Peter Kramer/NBC e Annie Leibovitz/Vanity Fair/AP
Bruce como homem e transformado em Caitlyn na capa da 'Vanity Fair': gênero é igual a raça?
Se não existe raça branca ou negra, qual o critério que se deve aplicar para considerar que alguém é negro ou branco? A cor da pele? A cor de seus antepassados? A presença de sangue negro ou branco nas veias? O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, que é branco, é casado com Chirlane McCray, que é negra. Os dois filhos do casal, Chiara e Dante, são considerados negros. Por quê? Neguinho da Beija Flor tem 67% de sangue europeu, e um sujeito loiro pode ter mais sangue negro nas veias do que Neguinho da Beija-Flor. A cor da pele pode parecer um critério óbvio para a “identificação racial”, mas há uma enorme variação cromática entre o branco extremamente alvo e o preto profundamente escuro. Sendo assim, qual o tom que define a passagem de uma cor para outra? Depois da divertida polêmica na internet sobre a cor do vestido — era azul e preto, ou branco e dourado? —, sabe-se que não vemos as cores exatamente iguais. Alguém pode ser negro para uns e branco para outros? Em 2007, os gêmeos univitelinos Alan e Alex Teixeira da Cunha inscreveram-se para as vagas das cotas raciais na Universidade de Brasília e, embora idênticos, Alan foi classificado como negro e Alex como branco.
Num artigo publicado no jornal inglês The Guardian, o colunista Steven Thrasher, considerado negro, escreveu: “A história de Rachel é fascinante para mim e para o resto do mundo porque expõe de modo inquietante que nossa raça é performance – que, apesar das enormes diferenças sobre como nossas raças são percebidas e privilegiadas (ou não), todas se baseiam num mito segundo o qual as distinções são intrínsecas e intrinsicamente perceptíveis”. E completou: “A ideia de que a raça é imutável é uma construção histórica e social.” Na sua conta do Twitter, o teólogo americano Broderick Greer, também considerado negro, escreveu que o caso de Rachel mostra “a estupidez da construção de ‘raça’”.
Como construção social e política, os rótulos raciais são arbitrários, imperfeitos. Variam conforme o contexto, a cultura, o zeitgeist. Sendo um conceito impreciso, como é possível catalogar uma população segundo critérios raciais? E, pior ainda, como é possível criar políticas públicas com base em critérios raciais, como as cotas raciais nas universidades brasileiras e no serviço público? A identificação racial é uma categoria que remete às ditaduras raciais, como a Alemanha nazista e a África do Sul do apartheid. Repudiar a classificação racial, além de combinar com uma longa tradição brasileira, é um ato de libertação – para negros e brancos. Obviamente, isso não significa, nem requer, desconhecer as condições desiguais em que vivem brancos e negros, nos Estados Unidos ou no Brasil.
Tudo considerado, por que Rachel Dolezal não podia apresentar-se como negra? No seu caso, claro, havia a mentira sobre a identidade de seu pai, havia uma falsificação. Como dizia a petição que pediu sua renúncia ao cargo de presidente da NAACP: “Não é uma questão de raça, é uma questão de integridade”. Mesmo assim, surgiu um debate paralelo que voltou a dividir conservadores e progressistas nos Estados Unidos. Se Rachel Dolezal não pode apresentar-se como negra, por que Caitlyn Jenner pode apresentar-se como mulher? Timothy Stanley, considerado branco, colunista do jornal inglês The Telegraph, perguntou: “Qual é a diferença material entre Rachel Dolezal e Caitlyn Jenner?” Stanley referia-se a Bruce Jenner que foi campeão olímpico nos anos 70 e, mais recentemente, participava do reality show das Kardashians. Bruce virou Caitlyn depois de fazer tratamento hormonal e assumir a identidade feminina. Saiu na capa de uma edição recente da revista Vanity Fair. Rod Dreher, que é considerado branco, editor da revista bimensal The American Conservative, ponderou: “Se Rachel Dolezal dissesse que é homem, todos nós teríamos que concordar, sob pena de sermos denunciados publicamente, mas se Rachel Dolezal diz que é negra, é justo questioná-la.” Na aparência, as duas questões, a racial e a de gênero, pertencem à mesma esfera da liberdade individual. Mas há, pelo menos, uma diferença gritante. Como realidade biológica, gênero existe. Raça, não. Em artigo no The Guardian, Meredith Talusan, que se identifica como transgênero, definiu a diferença entre raça e sexo ao seu modo: “Médicos não anunciam a raça ou a cor quando nascemos, mas anunciam o gênero. Desde os primórdios da história, existem pessoas que nascem com um gênero e se identificam com outro. Raça, ao contrário, é uma invenção da Europa medieval.”
Assista a um trecho da entrevista dos pais de Rachel Dolezal:
No vídeo, do segundo número 17 em diante, Ruthanne, mãe de Rachel Dolezal, que aparece ao lado do marido, Lawrence, afirma que as histórias que a filha vem contando sobre sua negritude são mentirosas. Ela afirma:
— São todas falsas. Acho que Rachel está tentando prejudicar sua família biológica e essas histórias, falsas como são, parecem servir ao seu propósito na cabeça dela.
A repórter pergunta:
— Vocês alguma vez a questionaram sobre isso?
A mãe responde:
— Não, porque Rachel não quer falar conosco. Ela se distanciou de nós e deixou bem claro que não nos queria por perto ou em comunicação com ela.